Tortura <em>made in USA</em>

André Levy
Dois livros recentes, saídos nos EUA, põem a nu dois aspectos tenebrosos do imperialismo estado-unidense. Uma Questão de Tortura(1), de Alfred McCoy, conta a história do uso de tortura pelos serviços secretos e militares dos EUA, e como esta se fundamenta em pesquisa científica especificamente concebida para atingir a mente humana.
Entre 1950 e 1962, a CIA gastou mais de mil milhões de dólares com vista a descodificar a consciência humana, para fins de persuasão de massas e uso de coerção em interrogatórios individuais. Usaram todo o tipo de métodos: electrochoques e drogas como LSD e pentatol de sódio (poção da verdade) e outras drogas. Os resultados significativos, porém, provieram dos estudos encomendados às grandes universidades de Harvard, Princeton, Yale e McGill.
Este programa de investigação culminou no uso combinado de privação sensorial (como a cobertura da cabeça) e de colocar o sujeito em posições em que inflige dor sobre si próprio, tal como a tortura do sono(2). Estas técnicas de tortura da CIA foram codificadas em 1963 no Manual de Contra-Inteligência KUBARK(3), mas recentemente expandida pelo Gen. Geoffrey Miller enquanto chefe da prisão de Guantanamo em 2002, com duas técnicas adicionais: ataques sobre a sensibilidade cultural, incluindo sensibilidade religiosa - ataques ao Corão - e de identificação sexual e género; e identificação de fobias individuais. Para este último efeito, criaram-se equipas «Biscuit»(4), equipas compostas por psicólogos militares que participam durante os interrogatórios e identificam os pontos psicológicos de maior fraqueza, específicas de cada interrogado. Em Agosto de 2003, o General Miller foi transferido para Abu Ghraib com o fim de aí instituir as técnicas de tortura.
Esta estratégia de tortura faz uso sobretudo do dano psicológico. Os EUA, embora tenham ratificado a Convenção Anti-Tortura das Nações Unidas, fizeram-no no Congresso excluindo referências à tortura psicológica. Isto embora seja reconhecido que esta forma de tortura deixa cicatrizes mais profundas e duradoura que a tortura física. O próprio Senador John McCain, prisioneiro de guerra durante a Guerra no Vietname, reconhece que preferiria ser espancado que sujeito a tortura psicológica. Mas a recente iniciativa legislativa(5), promovida por McCain no rescaldo do escândalo em Abu Ghraib, foi limada por múltiplas emendas. E até agora apenas militares de baixa patente foram penalizados. A responsabilidade das mais altas instâncias militares e da CIA ainda não foram reconhecidas.

Confissões

O segundo livro, Confissões de um Sicário Económico(6), de John Perkins, desvenda facetas de guerra económica exercida por detrás da cortina. A Agência de Segurança National (NSA(7)) treina agentes e infiltra-os em corporações privadas, de forma que as suas actividades não podem ser conectadas directamente com o governo dos EUA. Este foi o percurso de Perkins: recrutado pela NSA quando se licenciou em 1968 e depois colocado como economista da Chas. T. Main. Como outros sicários económicos, o seu trabalho consistia em providenciar favores, empréstimos de milhares de milhões de dólares a países menos desenvolvidos, sob a condição destes países contratarem firmas estado-unidenses, por exemplo para a construção de infra-estruturas. Assim o dinheiro emprestado nunca sai dos EUA, saí dos cofres do Banco Mundial para as contas da Becthel, Halliburton ou General Motors. Mas claro que o país terá que pagar os juros sobre estes empréstimos, com custo para os serviços sociais da sua população, e fica sujeito a chantagem económica.
Perkins explica também como os sicários económicos oferecem uma escolha a líderes recentemente eleitos: «Temos várias centenas de milhões de dólares neste bolso, se agir como queremos. Se achar que não quer, neste outro bolso, tenho uma pistola com um bala com o seu nome». Há inúmeros exemplos do suborno a funcionar, como o abandono das promessas eleitorais por Lucio Gutiérrez do Equador. A ameaça não pode ser tomada de ânimo leve. Basta recordar o que aconteceu com Jaime Roldos no Equador e Omar Torrijos no Panamá. Ambos morreram em acidentes de avião em 1981, havendo provas abundantes apontando para explosivos nos dois aviões. Perkins garante que o mesmo foi tentado contra Chávez na Venezuela, e que Evo Morales já foi visitado com o mesmo propósito. Muitas das forças de segurança na América Latina foram formadas pelos EUA, na Escola das Américas(8) e são fáceis de penetrar. Mas por vezes os chacais não logram penetrar e atingir o alvo, como sucedeu com Noriega ou Saddam Hussein. Nesse caso, avançam as tropas.
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(1) A Question of Torture: CIA Interrogation, from the Cold War to the War on Terror. Metropolitan Books, 2006
(2) Esta é a base da famosa tortura do sono infligida pela PIDE/DGS. Leia-se por exemplo os sintomas descritos por António Gervásio em resultado dos 18 dias de tortura do sono. Um excerto da sua intervenção no tribunal plenário criminal da Boa Hora, em 1972, está publicado em A Defesa Acusa, edições Avante!.
(3) tp://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB122/
(4) Behavioral Science Consultation Teams
(5) O Acto de Tratamento de Detidos.
(6) Confessions of an Economic Hit Man. Plume, 2005
(7) National Security Agency
(8) http://www.soaw.org/


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